segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Reza

Acordam e dormem enroscados.

Em próximo repouso, os corpos quentes da noite carregam as paredes com a terna leveza das horas corridas e, no arfar descompassado de seu busto, o tempo exerce seu trabalho silencioso -- escorre os olhos na ressaca noturna. Antes delicadamente atados em um laço de cetim, os dedos constritos buscam o concurso de seu calor na mão surda que dorme ao lado, pressentindo o movimento que se anuncia lá fora.

Ao largo, o uivo gigante da manhã espia a mansidão pelas frestas da persiana -- olhos alvos, mira no centro o quarto intocado, estanque e inerte em sua própria existência; quarto-fortaleza, que se alimenta e persiste segundo seus próprios mandamentos, à revelia do mormaço luminoso de uma alvorada em expansão. Intrusas, as primeiras nuvens do dia apertam os dedos nos cantos do cômodo e, furiosas, predizem nos sinos da face o rubro sanguíneo de um arrebol que há por vir; bufam, uivam e grasnam na ira de sua condição: efêmeras e dissolutas, quão malditas se percebem.

Atam-se a nada observando a tudo; na congestão de sua mediocridade esparsa e imortal, deliciam-se tocando o céu na ponta dos pés, cientes, contudo, do ônus de privilégio tão surreal; circulam irreversíveis no curso de um mistério natural que, a elas, pouco esforço faz em se omitir: desnuda-se decifrado, maldição ou fado sem segredos, corrente inquebrantável que as derruba, violento, às planícies, e obriga, agourento, seu certeiro retorno à morosidade pantanosa de lagunas sem sabor e terras de delícias desconhecidas.

Pesando a terra no aço de seus grilhões, o nimbus, no expediente de seu cansaço, inveja a fina seda dos corpos dos amantes -- atados em laço voluntário, corpórea certeza mais-que-natural, acíclica e de assombro constante, embebem-se na atmosfera de suas disposições pela carne altiva do espírito; impulso primeiro que faz do feitiço irreversível de um tempo sacramental fraca superstição de origem duvidosa, crendice pouco fugaz que cede, se acovarda e esvai nos vitrais fronteiriços entre um céu de onisciência e as mesmas persianas em que, quarto-catedral, um sono indelével arrebata toda a mística de um mundo indecifrável no murmúrio surdo de uma reza curta e no calor de pernas que se trançam e se acolhem em seu próprio mistério imprevisível.

Trocam suspiros, acordam e dormem enroscados.

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