terça-feira, 24 de setembro de 2013

Correspondências

Confidente,

Não lhe conheço. Não sei quem és.

Escrevo-lhe não por necessidade, mas por vontade própria. Escrevo-lhe porque preciso -- faz-se necessário -- em prol do espírito meu e teu. E não me contradigo quanto a necessidade, saiba. Ainda hei de lhe esclarecer melhor. Veja, não me agrada que se tenha chegado este estado de coisas. Não é fácil descrever. Poderia recitar-lhe poetas dos versos mais diversos neste intento de me fazer entender mas creio ser necessário partir de mim mesmo a voz, ainda que a meu próprio contragosto. É um esforço para comigo mesmo.

Ao menos a mim -- não sei e a ti assemelha -- é também uma busca pessoal que aqui empreendo. E não o seria se narrada nas palavras de outro qualquer, não? Entendo que nosso contato faz-se não sem motivo, definitivamente. Não te enganes, contudo. Não creio em destino ou nos astros ou num futuro ou o diabo que o valha. Qual pequenez esta, a humana! Meter todo um mistério indelével e indizível nas bordas rotas de três sílabas mancas. Destino é o cão, essa palavra mesquinha de que se valem os desvalidos. Não é que não confie no potencial das palavras, pelo contrário, não me tenha como odioso. Enerva-me, isso sim, o uso de que as fazem os homens. Não me envergonha pensar que, em definitivo e para todos os assuntos humanos, o problema sempre são os homens.

Esclareço mais. Mencionei-os ao início mas vejo ser importante lhe deixar alerta desde aqui que não sou -- longe de mim -- poeta. Odeio aos poetas e a suas letras e sabedoria. Que asco. Pergunto-me se, ao lerem Pessoa nas paredes úmidas de suas cavernas, os primeiros homens, atônitos, o chamariam poema. Se não é este mais um fricote e mariquice em que invariável e cansadamente nos metemos a chafurdar. Sabes a resposta. Destas mariquices necessárias ao espírito, talvez. É mais que necessário, contudo, ler-nos os poetas. Sim. Leio e amo a poesia não por necessidade, sempre me resguardo de escolher. Mas porque me parece ser preciso -- faz-se sempre necessário. Ai, de novo contradigo. Me quedo repleto de contradições e já aqui me cansam as letras. Deixemos, então, claro. Não sou e não serei -- e peço para que não me chame -- poeta. Pelo bem dessa nossa relação que tão inesperadamente se inicia. Não acho que o faria mas torna-se praxe dizê-lo a um sujeito em minhas condições. Que disparate. Há ainda muito mais que lhe gostaria de contar, mas não lhe importuno mais.

Espero tua réplica e a escusa da ternura casmurra que aqui lhe transmito (que, garanto, é casmurra, mas é ternura).

Sempre seu.

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Olá, pessoa estranha.
Desculpe por te chamar de estranha, não quis dizer estranha de anormal (apesar de me sentir feliz de ser diferentes das outras pessoas que coabitam meus ambientes cotidianos), mas sim de desconhecida.
Eu não sei se você escreveu pra pessoa certa, melhor checar o remetente (não sei se é remetente quem manda ou quem é mandado, digo, pra quem a gente escreve). Isso não me impediu, no entanto, de me identificar com aquilo que eu li.
Tem algumas coisas que não me fizeram sentido: as contradições contraditórias que você insiste em justificar, o ódio aos poetas, a aversão de ser confundido com um deles, a invariável culpa humana em, absolutamente, todos os aspectos. O maior problema da vida é o seu desfecho imutável, inadiável. Todo mundo sabe como isso aqui vai acabar. O homem, coitado, tem culpa de nada, não. A gente sofre, isso sim. A gente sofre, e os poetas sofrem. A diferença do resto pra eles, é que eles precisam escrever. E escrevem porque precisam. Senão existe a necessidade de escrever, melhor nem tentar. Tem que vir lá do fundo. Tipo respirar? 
Não sei se você vai escrever de novo, não sei se eu sou a pessoa certa.
Meu nome é Despina.

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Confidente Despina,

Com o perdão da intrusão, creio que conheces a origem de teu nome, não? É bonito, de certa forma. Faz-me alegrar. Peço desculpas, pois não sinto-me confortável em ter nomes. Conforta-me ser 'pessoa estranha' ou 'desconhecido'. Até porque, como a ti, sinto-me diferente. Aliás, creio que todos sentimos.

Ora, se tem homem qualquer vivo que sinta-se igual ou pertencente, que o abatam por imediato pois, por certo, perdeu algum detalhe muito importante de se estar vivo. E sou também, diferente a ti -- que é também anormal. Curioso. Fizeste-me pensar: como serão os normais? Ainda não creio ter descoberto.

Enfim, veja, sou teu remetente e tu és minha remetente -- se escolheres voltar a responder. Escrevi, sim, para a pessoa certa. Entendo o que queres dizer sobre o homem-vítima e, sim, coitado, não se pode ter culpa de nada. Concordo plenamente contigo. Estamos metidos aqui diante deste 'desfecho imutável'. Raios, que podemos fazer? Entretanto, também concordo plenamente comigo. Sim.
Explico.

Já que mencionastes a necessidade de se escrever 'vindo lá do fundo (mais do que necessidade, pois, de outra forma, sequer valeria a pena) gostaria de dividir contigo uma dúvida (mais do que dúvida, uma agonia, aflição) que me persegue invariavelmente.

Não é mesquinho o poeta? Lembro de ler nos versos de um qualquer sem nome que 'a menos que o Sol dentro de você / queime o seu âmago, / não escreva,'. Ora, qual pretensão. Como se diz que é o Sol a queimar dentro de você? Que não se pode escrever de outra forma? Como se mede a força desta chama?

Veja, como pode este poeta escrever se estando neste mundo? E ainda meter-se a dizer que não escreve, mas sim é o próprio Sol que queima dentro de si. Se este poeta escreve a um verso e em seguida olha para os céus, como pode continuar? Como pode escrever sob o olhar da estrelas -- constantes, onipresentes, encarando-o a todo tempo, feito um par de olhos diante de um aquário? Que piada.

Escreve, soberbo, que seu verso é infinito, de nariz empinado para o próprio sem-fim do universo. Pretenso, sequer se pergunta sobre a estrelas. E se o olham com rancor, ou até iradas? Se pudessem descer de sua plenitude etérea, que diriam a este tolo? O cumprimentariam truculentas, ou com um altivo aperto de mão, mirariam os olhos do poeta e, por certo, sentenciariam: 'tu nada sabes do Sol'. Assim, o poeta ainda teria a desfaçatez de se afirmar dono do fogo?

Diante da víligia eterna e misteriosa dos astros, se afirmaria conhecedor da chama, ainda metida lá fundo em seu âmago, dando vida as palavras? Voltaria para entre os seus com sua mesma postura, altamente estimado e sacralizado como tanto adoramos fazer? Ah, quão virtuoso este homem, se não é um farol da natureza humana'! Ora, um ovo! Para os infernos com este poeta!

E se repetisse que 'a menos que o Sol lhe queime da cabeça ao cu / não escreva'? Ora, caralhos, escreverei! Escreverei e estou aqui escrevendo porque estou vivo. Não o faço porque me queima, não escrevo porque me dói ou por culpa de qualquer merda de chama. Escrevo porque estou aqui e estou vivo, diabos! E se um qualquer gostaria de dizer que não se pode escrever de outra forma, pros caralhos com este qualquer! Que sinta algo queimando no mais fundo o âmago de seu rabo antes de escrever tamanho lixo!

Enfim.
Perdoe-me.
Perdoe meu linguajar e perdoe a digressão. Não quero soar rude.
Espero que entenda o que quis lhe dizer. Ainda concordo contigo. O homem é esta vítima. Mas ainda tendo concordar comigo.

Pensando, bem, não sei se escrevi para a pessoa certa. Você não é a pessoa certa, e tampouco eu sou a pessoa certa. Somos todos errados.

Estou cansado.
Vou lhe escrever de novo.

Sempre seu.



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